terça-feira, 3 de novembro de 2020

A escuridão dos meus olhos é igual à tua.

 

Um, dois, três, quatro passos, atraca, afasta, todos em sincronia, diária autofagia. Um mar de gente inunda o cais, vistos de trás, todos iguais.

No mundo em que vivemos agora, parecemos cada vez mais semelhantes. Podem dizer que é só a diferença de um nariz e uma boca mas de facto é que conhecer apenas os olhos de um indivíduo faz toda a diferença. No decorrer da minha vida sempre me disseram aquela frase tão clichê - “os olhos são o espelho da alma”, um pensamento espantoso de associar uma parte fisionómica com uma superfície refletiva.  De certa forma, falar com desconhecidos tornou-se imensamente mais fácil. 

Há uma tendência muito subtil de evitar ser identificado e visto, uma vulnerabilidade constante. A aproximação alheia parece perigosa como se os desconhecidos urbanos fossem uma ameaça. De facto, esta foi a maior diferença sentida entre a cidade e o campo – a ausência de medo do próximo.

A urbe assim ganha uma dimensão maior do que é aparente – uma selva enorme, artificial, em que o predador é exatamente semelhante a nós e o possível perigo está constantemente presente.

Fascinante é observar a tendência natural como o ser humano identifica mensagens corporais, e sem linguagem o outro já compreende se ele é um possível perigo ou não. Os outros animais geralmente distinguem o inimigo por ser de outra espécie enquanto o nosso inimigo somos nós mesmos e todo este sistema falso ao nosso redor. Será este sistema o verdadeiro culpado pelos predadores contemporâneos serem da mesma espécie que nós? Partilhando os mesmos olhos, os mesmos antepassados, a mesma origem.

A verdade é que a complexidade do Homem torna-o num animal irreverente. Se a natureza adquirisse consciência, ficaria surpreendida por esta específica criação com tendências autodestrutivas e maldosas. Sendo a racionalidade uma adaga, bênção e maldição.

E nós, mesmos, como indivíduos neste coletivo monstruoso, em algum momento da nossa vida fomos percecionados como ameaça a outra pessoa. Somos também nós capazes do mal? A grande máquina quer que pensemos que sim.


Caravaggio, Narciso, 1599
Galeria Nacional de Arte Antiga, Óleo sobre Tela, 110 x 92 cm
in https://www.wikiart.org/