Um,
dois, três, quatro passos, atraca, afasta, todos em sincronia, diária
autofagia. Um mar de gente inunda o cais, vistos de trás, todos iguais.
No mundo
em que vivemos agora, parecemos cada vez mais semelhantes. Podem dizer que é só
a diferença de um nariz e uma boca mas de facto é que conhecer apenas os olhos
de um indivíduo faz toda a diferença. No decorrer da minha vida sempre me
disseram aquela frase tão clichê - “os olhos são o espelho da alma”, um
pensamento espantoso de associar uma parte fisionómica com uma superfície
refletiva. De certa forma, falar com
desconhecidos tornou-se imensamente mais fácil.
Há uma tendência muito subtil de
evitar ser identificado e visto, uma vulnerabilidade constante. A aproximação
alheia parece perigosa como se os desconhecidos urbanos fossem uma ameaça. De
facto, esta foi a maior diferença sentida entre a cidade e o campo – a ausência
de medo do próximo.
A urbe
assim ganha uma dimensão maior do que é aparente – uma selva enorme,
artificial, em que o predador é exatamente semelhante a nós e o possível perigo
está constantemente presente.
Fascinante
é observar a tendência natural como o ser humano identifica mensagens
corporais, e sem linguagem o outro já compreende se ele é um possível perigo ou
não. Os outros animais geralmente distinguem o inimigo por ser de outra espécie
enquanto o nosso inimigo somos nós mesmos e todo este sistema falso ao nosso
redor. Será este sistema o verdadeiro culpado pelos predadores contemporâneos
serem da mesma espécie que nós? Partilhando os mesmos olhos, os mesmos
antepassados, a mesma origem.
A
verdade é que a complexidade do Homem torna-o num animal irreverente. Se a
natureza adquirisse consciência, ficaria surpreendida por esta específica
criação com tendências autodestrutivas e maldosas. Sendo a racionalidade uma
adaga, bênção e maldição.
E nós, mesmos, como indivíduos neste coletivo monstruoso, em algum momento da nossa vida fomos percecionados como ameaça a outra pessoa. Somos também nós capazes do mal? A grande máquina quer que pensemos que sim.
Caravaggio, Narciso, 1599
Galeria Nacional de Arte Antiga, Óleo sobre Tela, 110 x 92 cm
in https://www.wikiart.org/