sexta-feira, 30 de outubro de 2020

A máscara por detrás do ecrã.

Acordo, pego no telemóvel, horas datas, código, página inicial, aplicações Instagram, Twitter, Youtube e Facebook, para não falar em jogos, estes são os vícios que me ocorrem em primeiro lugar nas rotinas diárias, como à um tempo se faria o mesmo talvez com um jornal ou um radio agora faz-se mais facilmente com os polegares.

Sempre fui um grande apologista da arte de escolher o meu conteúdo em vez de me contentar com o conteúdo que me é mostrado. Foi por isso que deixei de ver televisão.
No meu computador tenho toda a informação ao meu dispor e no meu telemóvel digamos que encontro o mesmo, por muito que as coisas que faça com cada um dos dispositivos seja de forma geral diferente a questão está na informação que ambos me dão, nestes eu posso ver o conteúdo que eu escolho, seja este científico, político ou até mesmo de lazer, posso escolher ver um filme específico a qualquer hora, posso pesquisar por factos aleatórios desde a ciência dos foguetes até vídeos de gatos, enquanto que com a televisão tenho de me contentar com o filme ou série, jogo ou documentário que está a dar num certo canal a uma certa hora, e por muito valor que dê às gravações automáticas sempre vou achar que isso foi uma tentativa falhada por parte da televisão.
A televisão está a morrer.
Tal como o “vídeo killed the radio star” o vídeo como o conhecemos está a ser transferido das televisões para a internet, já é mais comum ver pessoas atentas ao telemóvel em frente a uma televisão, do que pessoas atentas à televisão durante um filme quando têm o telemóvel consigo, o futuro é mobile, é portátil, o passado é parar e observar mas já não há tempo para isso.
Quais as consequências?
Para responder é mais fácil se o fizer da minha perspetiva, eu sou uma pessoa que gosta de pesquisar as explicações que gosta de ver o outro lado, ver fora da caixa e pensar de outras formas, gosto de pensar que sou uma pessoa de mente aberta, acontece-me portanto que quando me cruzo com alguém mais confinado ao conteúdo televisivo consigo ver que existe uma grande diferença de dinâmicas, acho que de forma geral são pessoas mais informadas mas o conteúdo não passa do mesmo, seja uma ou mais séries, seja uma opinião política, seja o que for a sua opinião é normalmente a idealização perfeita de uma opinião popular. Enquanto que a conversa com alguém com a mente mais aberta, e que pesquisa pelos seus interesses acaba por ser mais interessante e com uma dinâmica mais excitante pelo facto de haver uma troca de ideias e argumentos que podem realmente trazer uma nova perspetiva, algo que não me faça pensar “claro que eu ias dizer isso”.
Esta nova facilidade de procurarmos pelos nossos interesses particulares vai nos dando aos poucos uma personalidade mais forte, cada vez se criam mais estilos de música, modas mais variadas, formas de expressão e personalidades, à medida que evoluímos nesta era de partilha de dados mais diferentes ficamos, o que dá a ideia que quanto mais partilha de dados houver menos partilha de ideias existe, o que antes era correto porque a televisão dizia, agora é correto para uns incerto para outros e para outros definitivamente incorreto, esta divisão que é visível a olho nu mas que passa despercebida a partir do ecrã.
Existe um novo tipo de máscara na nossa sociedade, esta que nos dá a possibilidade de sermos quem quisermos sem nos preocuparmos com alguém que possa ir contra nós, o que antes era considerado obsceno está agora a ser normalizado fazendo com que muitas mentes se queiram exprimir de formas diferentes, a máscara que usamos é agora tanto aquilo que nos junta como aquilo que nos separa, e facilita muito mais a alteração da perspetiva que possamos ter de alguém, já não existe mais separações por quem é rico ou pobre, passaram a haver as de quem tem lata para fazer conteúdo ou não, e enquanto antes quem tinha lata eram atores e jornalistas de topo agora pode ser qualquer um.
Podemos já não nos reunir à volta de uma fogueira e partilhar histórias durante horas, mas conseguimos criar um grupo de Whatsapp e partilhar vídeos durante anos. Esta ideia é revoltante e triste para muitas pessoas, mas temos de abraçar o futuro, atualizar o nosso sistema operativo pois a era das comunicações veio para ficar, e quem fica preso ao cheiro das árvores vai ser comido vivo pelo Excel. É fácil dizer que por este rumo vamos todos acabar com um bang, acho que tal como antes olhávamos as estrelas, passando para os desenhos em pedras, para conversa, para o jornal, rádio e televisão acho que estamos agora num caminho em que o objetivo é juntar tudo numa só plataforma e obter nela tudo o que há de melhor na comunicação e no conteúdo que é criado.
Esta máscara que a internet nos dá é a vai fazer com que as futuras gerações sejam mais inseguras, vão achar que não têm ninguém a quem se comparar, e por isso vão ser mais autênticas, seguindo o que verdadeiramente gostam e transmitindo uma ideia mito mais específica do que são e pensam em particular.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Responsabilidade em ter um filho

  Ter um filho não concede a aptidão para ser-se pai. Isto é, qualquer pessoa pode pôr um filho no mundo, a espécie depende disso, somos muitas vezes encorajados a tal, a ideia de criar um ser humano, educa-lo, vê-lo crescer, é maravilhosa, no entanto nem toda gente tem a capacidade, condição, inteligência e maturidade para tal.
  Os pais são essenciais na criação, os pais no caso entende-se por figura familiar, plural ou singular, não necessariamente os progenitores. Estes, responsáveis por uma educação não formal, transmitem conhecimentos e valores, uma base emotiva para uma criança que eventualmente terá de se inserir em sociedade. Todas as ações destes pais importam, todas transmitem algo ao filho, desde a maneira como erram, à forma como reajem e admitem esses erros. 
  Dificilmente alguém tem a sorte de ter uma educação perfeita, os pais, que um dia já foram filhos, tiveram de ser educados por alguém, muito ou pouco apto para essa tarefa. Os filhos, que um dia poderão vir a ser pais, aprendem com este exemplo de educação, que podendo estar cheio de lacunas, inicia um ciclo, um histórico de cicatrizes passados de geração a geração.
  E que condições são estas? A maturidade e inteligência emocional dos pais, a maneira como escolhem dialogar ou evitar tópicos, a educação formal, a possibilidade destes pais recorrerem a violência por acharem que esta impõe respeito, etc. Não esquecendo também as condições socioeconómicas, a condição financeira, os ideais que lhes foram incutidos em determinada época, o ambiente familiar. Todas estas circunstâncias podem acertar ou falhar na criação de um ser, na minha opinião, apto para educar um filho. 
  Olhando para a minha experiência, consigo perceber como a educação da minha mãe teve falhas, consigo perceber o porquê de ter tido a educação que tive, como a minha personalidade e ideais foram moldados não só pelas falhas da minha educação, mas pelo exercício de introspeção que me permite ver essas falhas. Acredito que muitos pais não devam ser pais, que uma criança saudável precise de um bom acompanhamento, cheio de compreensão, atenção, razão e tempo, porém, também acredito que mesmo alguém que venha de um ambiente defeituoso, tem a possibilidade de ultrapassar essas marcas emocionais, a possibilidade de quebrar esse ciclo, oferecendo ao filho a educação que não pôde ter.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

O nada que é tudo

Na obra o Corpo e a Imagem, Bragança de Miranda baseia-se no mito que Fernando Pessoa descreve em «Ulisses» na Mensagem, defendendo assim que a imagem é um «nada que é tudo». A intenção desta afirmação consiste em distinguir a imagem como algo mental, ou seja, a imagem não é algo material «é nada», «mas é tudo» porque é dela que decorre a existência. Se pudermos afirmar que no principio não era o verbo, mas sim as imagens ainda sem homens, chega-se rapidamente à conclusão de que se fossemos aplicar uma data de nascimento à imagem essa seria a mesma data de nascimento que aplicaríamos à natureza, após isso vem o verbo e o registo do ser humano.

Fernando Pessoa

Primeiro: ULISSES

        Primeiro

        ULISSES

O mito é o nada que é tudo.

O mesmo sol que abre os céus

É um mito brilhante e mudo —

O corpo morto de Deus,

Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,

Foi por não ser existindo.

Sem existir nos bastou.

Por não ter vindo foi vindo

E nos criou.

Assim a lenda se escorre

A entrar na realidade,

E a fecundá-la decorre.

Em baixo, a vida, metade

De nada, morre.[1]

 

“A perda da imagem absoluta equivale ao desabamento da hierarquia em que o absoluto se sustenta, mas também à indecisão sobre as imagens a vir ou que vêm na infinidade dos envios que nos chegam de todo o lado, apoiados nas tecnologias telemáticas. A nossa crise, hoje, é acima de tudo a das imagens, e com ela, a das palavras, valores e todas as outras.”[2]

 

Com esta afirmação podemos perceber, mais à frente na obra, a defesa da teoria de que o problema e a crise moderna baseiam-se na falta de uma imagem comum. Uma imagem que sirva de ícone comum, que atinja e que toque todo o ser humano e tudo o que dependa deste. No entanto a imagem tem-se vindo a desfragmentar ao longo do tempo, porque não poderia haver liberdade enquanto se resumisse tudo a um ícone comum. Era preciso libertar as imagens, fossem para que uso fosse.

 

“A «imagem» existe para se poder conviver com a violência de tais forças; ela é a forma em que a vida se singulariza, se torna vivível e «humana».”; “A imagem é, assim, uma lesão primordial da opacidade das «coisas».”[3]

 

É aqui que se começa a abordar a imagem na sua essência, o que é a imagem? Se atribuirmos à imagem o pensamento que Da Vinci atribuiu sobre a arte, afirmamos que a imagem é uma coisa mental. Porque a imagem é gerada na mente de um observador de uma obra material ou de um objeto já existente. Outra forma mental, é a chamada arte como conceito, que existe apenas no plano mental. A qual não busca se prender em matéria alguma, ou seja, tratando a imagem desta forma, estar-se-ia a abordar a imagem como coisa mental e produto não só da matéria como também da imaginação.

 O facto de se passar essa imagem para uma matéria, seja num processo de camuflagem, de mimica ou de um conceito artístico, faz com que essa mesma imagem seja um fragmento de um fragmento. Ou seja, existe a imagem da matéria, existe a imagem mental de um ser sobre essa matéria e posteriormente existe a imagem de uma matéria produzida por esse ser. Concluindo todo este processo, vão existindo fragmentos de imagens e fragmentos desses fragmentos. No meio disso tudo, no processo da imaginação graças a esses fragmentos, é possível criar a imagem daquilo que nunca existiu.



[1] Pessoa, Fernando. Mensagem. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972).

[2] Miranda, José Bragança de. Lisboa: Editora Nova Vega, limitada, 3ª edição (2017), p.13

[3] Miranda, José Bragança de. Lisboa: Editora Nova Vega, limitada, 3ª edição (2017), p.24


 

Distância

 

Construímos cada vez mais uma realidade à parte, desconectada do mundo, autossuficiente, e portanto centrada no “eu”:

«Não há uma «catástrofe ambiental». Há, sim, esta catástrofe que é o ambiente. O ambiente é o que resta ao homem quando ele já perdeu tudo o resto. (…) Não há nada para além de nós, filhos da despossessão final, exilados da última hora – que vimos ao mundo em cubos de betão, colhemos fruta em supermercados e seguimos os ecos do mundo na tv – para ter um ambiente. Não há nada para além de nós a assistir ao nosso próprio desvanecimento, (…).

Aquilo que se fixou enquanto ambiente foi uma relação com o mundo fundada na gestão, ou seja, na estranheza. Uma tal relação com o mundo em que nós não somos feitos do murmúrio das árvores, do cheiro a fritos do prédio,  do correr da água, do bruaá das salas de aula, ou da humidade das noites de verão, uma tal relação com o mundo em que existo eu e o meu ambiente, que me rodeia sem nunca me constituir. Tornámo-nos vizinhos numa reunião de condomínio planetário. Não é fácil imaginar um inferno mais completo.

Nunca nenhum meio material mereceu a designação de «ambiente», a não ser, eventualmente, neste momento, a metrópole. (…) Nunca um cenário dispensou tão bem as almas que o atravessam.» (COMITÉ INVISÍVEL, 2010, pp. 70 e 71).”

E é mesmo de ‘atravessar’ que se trata: sempre que saímos do “casulo doméstico”, apressada e atarefadamente, é com uma máscara, que nos impede  de sentir o sol, o ar, os cheiros; não podemos tocar todas as texturas e profundidades para não nos infetarmos com germes; e muitas vezes ainda andamos com fones (“«com o meu leitor de mp3, eu sou senhor do meu mundo.» Para sobreviver à uniformidade que nos cerca, a única opção é reconstituir sem parar o nosso próprio mundo interior, como uma criança que reconstruiria por todo o lado a mesma cabana.” (COMITÉ INVISÍVEL, 2010, p. 54).

Em suma, o contacto com o mundo, com a realidade, é evitado ao máximo (agora mais do que nunca - em nome da segurança), pelo que é também mais oportuno do que nunca questionar essa forma de relação, e a hierarquia de valores subjacente. Porque com a pandemia estamos a viver um paradoxo incrível: A vida suspende-se para sobreviver’, “a sociedade da sobrevivência perde completamente o sentido do bem viver”, eparadoxalmente, o amor ao próximo manifesta-se como distanciamento. (BYUNG-CHUL HAN, 2020)

A pandemia veio intensificar a relação mediada e distanciada que temos com a realidade, que vivemos cada vez mais através do écran do telemóvel ou da televisão. Esses médiuns sumarizam, simplificam, bidimensionam, reduzem a informação, que na verdade necessita de grande complexidade para ser compreendida; por outro lado, o excesso de informação e de disponibilidade que esses médiuns nos proporcionam força-nos à passividade e indiferença (“La mélancolie est cette désafection brutale qui est celle des systèmes saturés. (JEAN BAUDRILLARD, p. )), e a nossa atenção torna-se fragmentada e dispersa – Baudrillard fala de uma “force de realité” que falta: “tout cela vient s’aneantir sur l’écran de la télévision”. (JEAN BAUDRILLARD, p. 236)

Todos os nossos sentidos (que os filósofos antigos apelidavam de “as janelas da alma”) passam a ser exercidos apenas em contextos e ambientes por nós criados (deixámos de abrir a nossa alma ao mundo que descontrolamos).  Os músculos, por exemplo, exercitamos no ginásio, fora de qualquer interação direta com o mundo, com o qual passamos a ter uma relação neutralizada…

«O que torna a crise desejável é que, nela, o ambiente deixa de ser o ambiente. Somos compelidos a restabelecer um contacto, ainda que fatal, com o que temos, a reencontrar os ritmos da realidade. Aquilo que nos rodeia já não é paisagem, panorama, teatro, mas sim aquilo que nos é dado habitar, com o qual devemos criar e no qual podemos aprender.» (COMITÉ INVISÍVEL)

Mas na verdade a nossa resposta à pandemia consiste em levar a um extremo da mediação TODAS as ligações:

Quando a natureza nos ameaça tocar de forma letal, a mediação com a natureza passa a ser nos imposta com um caráter de obrigatoriedade/…assumida/autoritária/. A espontaneidade e liberdade são controladas, num vigiar constante, indiferente ao facto de que esconder-se da morte significa esconder-se da vida.

Com a imposição do distanciamento, a comunicação passa a ser feita exclusivamente através das redes sociais - é uma comunicação muito mais narcísica, porque só o eu é que está verdadeiramente presente, o outro está a uma grande distância…

Também as aulas que passam a ser por zoom tornam a aprendizagem, que seria um momento de partilha, num exercício muito mais individual quando o ambiente não é partilhado, e as sensações que eu sinto são tão diferentes das que os outros sentem (deixamos de ter uma experiência sensorial e emocional comum, que depende tanto do ambiente físico, do ‘aqui’).

 

Mas existe ainda uma profunda identificação entre a humanidade e o mundo, por mais controlado que seja o ambiente que nos circunde, e que pode ser sentida (como conclui Lévi Strauss nas famosas últimas linhas de “Tristes Trópicos) eman essence that may be vouchsafed to us in a mineral more beautiful than any work of Man; in the scent, more subtly evolved than our books, that lingers in the heart of a lily; or in the wink of an eye, heavy with patience, serenity, and mutual forgiveness, that sometimes, through an involuntary understanding, one can exchange with a cat’. (CLAUDE LEVI-STRAUSS)

 

COMITÉ INVISÍVEL (2010) - A Insurreição que vem, Lisboa: Edições Antipáticas

BYUNG-CHUL HAN (2020) - A Sociedade Paliativa, Lisboa: Relógio DÁgua

JEAN BAUDRILLARD (1981) - Simulacres et simulation, Paris: Éditions Galilée

CLAUDE LEVI-STRAUSS - Tristes Tropiques, New York: CRITERION BOOKS, INC. disponível on-line:

https://archive.org/stream/tristestropiques000177mbp/tristestropiques000177mbp_djvu.txt

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

As nossas Máscaras

 

    O professor de Cultura Visual referiu na aula que todos os seres humanos usam uma máscara. Não uma máscara cirúrgica, como aquelas que agora nos habituámos a ver nos outros, mas uma máscara cultural. Eu, além destas duas máscaras — uma física (material) e outra figurada —, penso que transportamos connosco muitas outras.

    Cada conhecido, cada pessoa com quem nos cruzamos, coloca sobre o nosso rosto uma máscara. Nela, vai pintando a imagem que cria de nós, aquilo que acredita que nós somos. Fá-lo através das experiências que partilha connosco, e à medida que nos conhece melhor. Não podemos retirar estas máscaras e, de cada vez que nos cruzamos com um conhecido, a máscara que ele pintou para nós cobre-nos o rosto, e é inútil escondermo-nos. É impossível, para os que nos rodeiam, verem-nos sem a máscara. É impossível para eles compreender apenas o nosso rosto, sem nada que o adorne.

    Todas estas máscaras escondem inevitavelmente o mais íntimo de nós. Escondem o que escapa à maioria. Escondem o que simplesmente somos. É impossível tirarmos estas máscaras que os outros nos colocam, e até acabamos, inconscientemente, por os ajudar a pintá-las, porque lhes desvendamos pequenos pedaços de nós. 

    Somos forçados a usar muitas máscaras ao longo da nossa vida e é angustiante pensar que cada pessoa executa uma delas com uma imagem diferente de nós, que pode não corresponder ao que desejamos. Aliás, apercebo-me agora de que, talvez, também nós criemos uma máscara para nós próprios. O mais íntimo de nós, o eu nu, ninguém o conhece. Ou talvez não exista mesmo.

    O que somos, afinal? Alguém o sabe? Quando sobrepomos todas as máscaras que os outros executaram de nós, encontramos alguma ordem, algum padrão que nos defina? Sinto que mudei tanto, e tantas pessoas pintaram imagens de mim que não eram as finais! Mas também eu própria criei a minha máscara, que pode não coincidir exatamente com os traços do meu rosto, e uso-a constantemente. Posso afirmar com certeza que sou verdadeiramente alguma coisa? Ou será que sou tudo o que pintaram de mim, todas as máscaras em simultâneo que para mim criaram, e também a minha? Talvez sim, e, nesse caso, não me posso definir. Sou muitas coisas diferentes, em muitos tempos diferentes e em muitos locais diferentes. Que belo carnaval, este que nunca para e que dura toda a vida.

domingo, 25 de outubro de 2020

O corvo do Dehaene

   


Como o prometido não é de vidro—é devido—, aqui vai o texto sobre o corvo contador lembrado na aula de 20 de outubro. É antecedido do pedaço introdutório dum poema do Prévert que o Stanislas Dehaene verte em inglês, mas que preferi transcrever no original.

(António Mouzinho)


Une pierre
deux maisons
trois ruines
quatre fossoyeurs
un jardin
des fleurs

un raton laveur
[…]

JACQUES PRÉVERT, Inventaire
(PAROLES, 1946)



    «Books on natural history have recounted the following anecdote since the eighteenth century:

A nobleman wanted to shoot down a crow that had built its nest atop a tower on his domain. However, whenever he approached the tower, the bird flew out of gun range and waited until the man departed. As soon as he left, it returned to its nest. The man decided to ask a neighbour for help. The two hunters entered the tower together, and later only one of them came out. But the crow did not fall into this trap, and carefully waited for the second man to come out before returning. Neither did three, then four, then five men fool the clever bird. Each time, the crow would wait until all the hunters had departed. Eventually, the hunters came as a party of six. When five of them had left the tower, the bird, not so numerate after all, confidently came back, and was shot down by the sixth hunter.


    Is this anecdote authentic? Nobody knows. It is not even clear that it has anything to do with numerical competence: For all we know, the bird could have memorized the visual appearance of each hunter rather than their number. Nevertheless, I decided to highlight it because it provides a splendid illustration of many aspects of animal arithmetic that are the subject of this chapter. First, in many tightly controlled experiments, birds and many other animal species appear to be able to perceive numerical quantities without requiring special training. Second, this perception is not perfectly accurate, and its accuracy decreases with increasingly larger numbers; hence the bird confounding 5 and 6. Finally, and more facetiously, the anecdote shows how the forces of Darwinian selection also apply to the arithmetical domain. If the bird had been able to count up to 6, perhaps it would never have been shot! In numerous species, estimating the number and ferocity of predators, or quantifying and comparing the return of two sources, are matters of life and death. Such evolutionary arguments should help make sense of the many scientific experiments that have revealed sophisticated procedures for numerical calculation in animals.»


                                        DEHAENE, Stanislas—The Number Sense:  How the Mind Creates Mathematics. New York: Oxford, 2011


 

 

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Máscara da perfeição

    

Acho interessante este tema das máscaras, porque é a única coisa que tem estado na minha cabeça estes últimos 10 meses, sem exagero.

 

            Sempre fui uma pessoa relaxada que lidava bem com as situações do dia-a-dia, isto é, conseguia permanecer calma nas situações mais stressantes ou complicadas. Por natureza, sempre levei tudo na brincadeira e nunca pensei muito, nunca me questionei porquê. Posso dizer que estive sempre em piloto automático (não vejo como algo mau, se tiver uma mentalidade que me traga paz) e até tinha um bom piloto.

            Sendo uma pessoa que adora falar e bastante social, tive a oportunidade de conhecer vários tipos de pessoas, ou posso dizer "vários tipos de máscaras". Antes da quarentena, não achava as máscaras uma coisa boa, achava que ninguém era real. Isto tudo sem perceber que eu própria tinha uma, porque me conhecia tão bem, expressava o que sentia e pensava sem medos, defendia a minha verdade,... eu achava isso real e continuo a achar. Mas não sentia que as pessoas à minha volta diziam o que realmente pensavam, sentiam, acreditavam... e não percebia porquê.

            De todas as máscaras que conheci, a que me fez ficar consciente da minha foi a “máscara da perfeição”. As pessoas que mais tentam ser perfeitas, acreditando que conseguem sequer sê-lo, são as menos reais e, ironicamente, acham-se as mais corretas e mais humanas. O que é contraditório porque o ser humano foi feito para errar e evoluir, então uma pessoa que não erra é humana?

E, depois de ter conhecido imensa gente com esta máscara, o meu mundo ficou um pouco intoxicado, porque essas pessoas tornaram-se a minha realidade. Esta máscara foi a que me fez parar de não pensar, pensando eu que estava errada por ter amor próprio  e fazer o que era melhor para mim.

Achei bastante interessante o facto das pessoas com essas “máscaras perfeitas” serem as mais miseráveis e quererem mudar o mundo para que todos sejam. Ou terem uma máscara tão frágil que precisam de “ser levados ao colo”, porque a máscara quebra à mínima coisa que acham que está mal no mundo.

            Após muitos meses a pensar sobre isto, cheguei à conclusão de que ter máscaras é saudável, até um certo ponto. Primeiro, é impossível ser-se perfeito e somos todos tão diferentes, então como é que podemos socializar? Tendo uma máscara com o nosso lado positivo, apenas mostramos isso, tentando criar harmonia na sociedade. Ou seja, a nossa máscara tem de ter o que a sociedade gosta, o que é fácil de compreender, o positivo apenas, isto falando apenas da maneira de ser, porque a máscara vai muito para além disso. Eu costumava ver isso como “fazer o que a sociedade quer que nós façamos”, agora vejo como “criar harmonia e bom ambiente, visto que temos de passar tempo juntos”; segundo, também é saudável porque as pessoas projetam as suas experiências, traumas,... umas nas outras, então temos de garantir que estamos protegidos pela nossa máscara. A pessoa está a criticar a máscara, não a mim, então a máscara é algo que funciona como um mecanismo de defesa; terceiro, através dessa máscara que usamos acabamos por encontrar as “nossas pessoas”, com quem podemos tirar a máscara e ser reais, isto é, expressarmo-nos sem sermos julgados, criticados,...

 

            Eu sinto que muita gente vê este tipo de máscara como algo mau, mas, do meu ponto de vista, é algo bastante bom, porque cada pessoa tem o seu caminho, tem a sua evolução, as suas experiências, opiniões,... e é impossível conseguirmos ser todos amigos. E, até um certo ponto, ter uma máscara é saudável. Do meu ponto de vista, deixa de ser saudável a partir do momento em que nunca a tiramos e acreditamos que ela é a nossa pessoa.