segunda-feira, 12 de outubro de 2020

A menstruação e cultura visual (8388)

Ainda hoje, em muitos países, as mulheres são segregadas por estarem menstruadas. Nos anúncios de absorventes menstruais a realidade nunca é representada, e o sangue deste ciclo natural feminino (e tão importante) é ainda tabu. Ainda que sejamos bombardeados com sangue, na televisão, nas redes sociais, e até no dia-a-dia citadino à conta da violência, ainda nos retraímos ao ver este sangue natural exposto. A verdade é que podemos ver e sentir o corpo feminino de uma forma bem mais acolhedora e digna se nos lembrarmos que ancestralmente o ciclo menstrual era dado como uma ferramenta divina e poderosa, que permitia limpeza do corpo e da alma e autoconhecimento. Durante muito tempo foram as mulheres a liderar as tribos porque tinham útero - não porque podiam gerar filhos, mas porque o ciclo menstrual é uma espécie de bússola comportamental. As mulheres que se conectavam com o seu ciclo, com o seu corpo e com a natureza tornavam-se mais intuitivas e mais sábias. Nos dias da menstruação eram feitos preparativos especiais para garantir o conforto da mulher. 


Se o título deste artigo que escrevo é “A menstruação e cultura visual” ele tem tudo a ver com as construções culturais que a sociedade ocidental estabeleceu, ao longo dos séculos, sobre as noções de género e sexualidade, e que são manifestadas mais especificamente através de imagens publicitárias de absorventes menstruais e analgésicos que se propõem a aliviar as dores advindas das cólicas menstruais. São, a meu ver, a principal forma de exposição pública do tema – embora de forma muito restrita e contida. Ao integrar uma educação cultural de tal forma inibitória - em que os próprios pais, o Estado, a Igreja, a Escola, os media, entre outros, abordam este assunto de caracter biológico como sendo um “tabu” e algo que deve ser escondido - a mulher vê-se encapsulada num conjunto de regras a fim de controlar o próprio corpo e a forma como explora a sua sexualidade. 


Quando se fala em menstruação, é comum as pessoas terem uma noção simplista sobre o assunto, de tal modo a encará-la como mais uma evento natural do corpo feminino. De facto, poderia assim sê-lo. Porém, na mesma intensidade em que o fenómeno biológico é visto de forma natural, as construções culturais, que aqui denomino na maior parte das vezes como “tabus”, foram normalizadas ao ponto de os sujeitos vivenciarem os discursos oficiais acerca da temática como algo natural. 


Tudo começa com a menarca. Além da definição proposta pelo dicionário, também é possível relacionar o significado de menarca com a origem de uma data de sentidos construídos em volta do corpo de uma mulher. Não me refiro apenas à premissa de que com a primeira menstruação a possibilidade de gerar um filho é concretizada. Uma série de tabus foi construída e estabelecida como verdade e a associação da menstruação com sentidos negativos repercutem, até hoje, na imagem que homens e mulheres têm acerca tanto desse acontecimento quanto do comportamento do sujeito feminino de modo geral.



A marca de absorvente Intimus publicou o anúncio representado acima (figura 1) através da Revista Atrevida, cujo público-alvo eram mulheres e adolescentes, em julho de 1995. O tom publicitário utilizado ao longo do texto, que ocupou uma página inteira, deixa evidente a necessidade de haver uma boa escolha, da parte da mulher, relativamente aos absorventes, de forma a que possa garantir a segurança e confiança. Este facto fica percetível em excertos como “... eles passaram a ser finos, confortáveis e ainda mais seguros...” e “são as suas exclusivas barreiras laterais que dão mais segurança contra os vazamentos, até nos dias de maior fluxo” para caracterizar as qualidades atribuídas aos absorventes da marca em questão. Em relação a quem e ao que é que mulher precisa de se sentir segura durante o seu período menstrual? O absorvente vai protegê-la de que ameaça? Seria contra o sangue? Afinal, é exatamente o fluído da menstruação que carrega o sinal de vergonha.



A artista, desenhista de comics e cientista política Liv Strömquist (2018), na sua obra “A Origem do Mundo – Uma História Cultural da Vagina ou A Vulva VS. O Patriarcado”, faz uma comparação directa do sangue menstrual com o vinho tinto. Se há a eventual situação em que alguém entorna vinho no sofá, não é comum descrevê-la como “insegura” ou “desprotegida”. No entanto, se é o sangue proveniente da menstruação que mancha o mesmo local, a situação já não é vista de modo natural (ainda que o ciclo menstrual seja algo completamente vinculado ao biológico e à natureza do corpo feminino). Nesse sentido, Strömquist, ao mesmo tempo em que aborda a questão menstrual, faz uma breve alusão ao facto do trabalho doméstico ser vinculado à imagem da mulher ao dizer às leitoras que “[...] o medo que você tem quando está menstruada não tem a ver com a realização obrigatória das tarefas domésticas não renumeradas, como a limpeza de tecidos, mas tem a ver com a revelação de que você está realmente menstruada” (STRÖMQUIST, 2018, p. 101).



Para compreender melhor as questões de género e sexualidade sobre a perspetiva dos “ensinamentos” culturais, é viável analisar as estruturas envolvidas nessas relações. Para tal, volto a analisar a imagem apresentada: A mulher da figura 1 é um modelo a ser seguido pelas outras mulheres. Ela transparece higiene, sorri e faz a escolha correta de absorvente para não correr o risco de tornar a sua menstruação percetível (o que a Intimus chama de “acidente”), nem mesmo com o uso de roupa branca. 

Fica subentendido que a pessoa que se depara com o anúncio deve interiorizar e sentir o medo de se parecer com o “tipo de mulher” (o tipo que representa perigo para a ordem estabelecida, já que não se preocupa em orientar-se de acordo com os padrões estabelecidos) desleixada que expõe o seu corpo ao risco de “acidentes” durante o período menstrual. Uma vez que a marca anuncia que há um dever, por parte do sujeito feminino, de eliminar um acontecimento fatídico em relação ao seu sangue menstrual, ela espera que esse público simplesmente tenha uma reação semelhante ao pensamento “eu não quero ser esse tipo de mulher”.


O meu intuito não é usar este anúncio como uma forma de documentação fiel da era vivenciada na época da sua publicação, no entanto, a sua integração numa revista de mulheres e jovens adultas que provavelmente estariam a começar a compreender e conhecer o seu corpo e sexualidade (o que engloba o comportamento face aos ciclos menstruais) não parece obra do acaso. Torna-se assim possível falar de um dispositivo de controlo sobre a sexualidade das mulheres, em que as imagens podem funcionar como peças nessa engrenagem. 

“A publicidade não inventa coisas; o seu discurso, as suas representações, estão sempre relacionadas com o conhecimento que circula na sociedade. As suas imagens trazem sempre signos, significantes e significados que nos são familiares” (SABAT, 2001, p. 12). Podemos concluir que as diferentes formas de discurso são introduzidas em diferentes fases do crescimento do sujeito, para que este crie uma bagagem a ser aproveitada de acordo com os interesses das estruturas de poder. 


Como mulher, quero acreditar e considero possível que neste sistema quebrado e neste “mundo ao contrário” em que vivemos, possamos ocupar os nossos corpos sem sentimentos de culpa, tabus e vergonha – essa atitude é potencializadora de energia criativa, amor-próprio e até de saúde — como a menstruação. Afinal, existe muita arbitrariedade à volta deste assunto que é natural. É portanto mutável e aceita novas formas de ser encarado.





STRÖMQUIST, Liv. A origem do mundo. Uma história cultural da vagina ou a vulva vs. o patriarcado. 1. ed. São Paulo: Quadrinhos na Cia, 2018. 


SABAT, Ruth. Pedagogia cultural, gênero e sexualidade. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 9, n. 1, p. 9-21, jan. 2001. 



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