terça-feira, 20 de outubro de 2020

“Que horror, mas as mulheres têm pelos?”

 

Desde sobrancelhas, a buço, axilas, braços, virilhas, pernas, genitais, as mulheres vivem obcecadas por eliminar os pelos de seus corpos, porquê?

Uma das explicações para este nosso estranho hábito seria por um motivo evolutivo. Como o ser Humano é um dos únicos mamíferos que não tem o corpo coberto de pelos, e estes podem alojar muitas vezes parasitas e doenças, a ausência de pelos seria vista como algo relacionado com limpeza e saúde, o que levaria a concluir que a não existência dos mesmos seria um traço vencedor na selecção natural. Desta forma, os animais machos, receberiam um sinal inconsciente de que a falta de pelo é um sinal de saúde. Mas sendo assim, porque é que apenas as mulheres é que precisam estar depiladas? Porque é que no caso do homem, o pelo é visto como um sinal de virilidade e na mulher é sinal de desleixe ou falta de higiene?

Tanto em publicidades, como cartazes, cinema, revistas, redes sociais, ou em qualquer outro veiculo de comunicação, o mundo continua a invisibilizar, não normalizar, e pior, desaprovar, a pilosidade feminina, tratando este assunto como algo grutesco, e o mesmo não acontece só nesta questão, podemos verificá-lo em questões como o sangue menstrual, estrias, ou mesmo celulite. Não será tudo isto uma verdadeira enfatização do corpo e da imagem feminina? Não estaremos nós mulheres a ser obrigadas a usar uma máscara que não nos pertence, para nos conseguirmos enquadrar com relativa plenitude numa sociedade que apesar de tudo não nos representa? Não será tudo isto fruto de questões culturais que nos foram transmitidas e que teremos de ter como valor, para uma boa convivência com a nossa espécie? Até que ponto podemos considerar que temos arbitrariedade em relação a uma questão como esta?

Bem, há cerca de dois anos, a marca Billie, marca esta que se dedica a estas questões e procedimentos estéticos que dizem respeito à remoção de pelo, lançou uma campanha onde inseria diferentes modelos, com diferentes tipos de corpos, medidas, cores, e ainda, modelos com pelos para comprovar a eficácia de suas lâminas. É incrível pensar que esta iniciativa, de mostrar mulheres reais com pelos em todo o corpo numa campanha, aconteceu pela primeira vez no ano de 2019. Até ao momento, todas as campanhas de cremes, lâminas, ou ceras depilatórias, eram apresentadas a depilar corpos femininos já depilados. Durante todo este tempo fomos bombardeadas com anúncios de lâminas de barbear masculinas, em que os modelos de facto aparecem com pelo em seus rostos e só depois estes são removidos. Escusado será dizer que uma campanha como estas correu mundo e foi rapidamente tão conhecida quanto criticada pelo público, gerando portanto muita confusão, e sendo considerada como um ato extremamente provocativo.

É muito importante a normalização da pilosidade do corpo feminino.

“A verdade é que quando se fala de pelos nos homens, é de senso comum dizermos que faz parte do pacote. Quando falamos de pelos nas mulheres, isto entra no patamar do grotesco. Pensemos no exemplo mais curto e grosso possível: um homem que tenha os genitais com um grande tufo de pelos púbicos é só normal. Vá, no máximo alguns podem achar que uma aparadela faria sentido, mas não é grave. Quando pensamos nos genitais de uma mulher com pelos que chegam às virilhas, adjetivos como “porca” ou “nojenta””

PINTO, Paula Cosme, “Que horror, as mulheres têm pelos?”,Expresso,27.06.2019

Às vezes dou por mim a pensar na incapacidade que temos, para mostrar a uma mulher, ou jovem, que é normal e totalmente aceitável ter-mos pelos, e poder mostra-los. Porque tudo aquilo que nos circunda nos mostra o contrário, e como vamos fazer com que alguém acredite em nós, quando não nos conseguimos provar? Quando tudo aquilo que se vê, indica o oposto? Nos programas de TV, nas estradas, nos anúncios, nas revistas. O  mesmo acontece em relação, por exemplo à mulher gorda, quantos filmes existem em que a atriz principal é gorda e não ridicularizada? Quantas mulheres gordas aparecem em campanhas de roupa, roupa interior, ou mesmo roupa de desporto? (O que deixa o assunto ainda mais interessante, porque afinal, não são os gordos que têm de fazer exercício físico?!). Enfim, é muito triste, no mundo em que vivemos, dito já tão avançado, as mulheres ainda não se sentirem confortáveis em seus corpos tais como eles são, e sentirem necessidade de se alterar por causa de algo que já está tão enraizado em nossa cultura e sociedade, que já não é nem questionável. Considero altamente perigosas estas noções que nos são impostas e baseadas em questões de género e sexuais, resultantes de uma sociedade machista e patriarcal, que impõem determinado padrão de beleza, e afeta diariamente a rotina de milhões de mulheres, tornando isto uma enorme fonte de opressão social.

Como numa publicação anterior aqui no blog, acerca da Menstruação na Cultura Visual, uma colega citou, gostava de inserir em meu discurso, o seguinte excerto:

““A publicidade não inventa coisas; o seu discurso, as suas representações, estão sempre relacionadas com o conhecimento que circula na sociedade. As suas imagens trazem sempre signos, significantes e significados que nos são familiares” (SABAT, 2001, p. 12)”

 

Como mulher feminista acredito no progresso e no dever e direito que temos de ocupar os nossos corpos e vivê-los em plenitude. Acredito ainda na liberdade de nos expressarmos como entendermos, de escolhermos o que queremos ser, e que pele iremos vestir. Acredito no poder e na necessidade das nossas vozes, de direitos iguais e oportunidades iguais, numa futura reeducação tão necessária para esta sociedade e cultura, para que nos possamos sentir seguras, confiantes e representadas.