terça-feira, 20 de outubro de 2020

Reflexões Contemporâneas

Olhar para e saber interpretar o céu já foi uma necessidade: o que separava a vida da possível morte. Agora é um luxo reservado a pessoas que para ele façam tempo. Entre a meteorologia no telemóvel e o joelho esquerdo que me dói sempre na véspera de um dia de chuva, já não há grandes razões para se olhar para cima.

Comprei no inicio deste ano um livro que se dá pelo nome “best of travel 2020”. Ninguém diria que a maior viagem que faria este ano seria do quarto à cozinha com paragens na casa de banho e no escritório para ir buscar os copos de água que deixo perdidos pela casa. Comprei também plantas e dei nomes a todas, e agora leva-me cerca de quarenta e cinco minutos a regá-las. Comprometi-me com aulas de alemão e latim, mas tenho de me esforçar mais para não adormecer no divã. Nesta tentativa quase desesperada de preencher tempo e espaço — que penso que muitos temos sentido nestes meses — tenho passado muito tempo a olhar para o céu. A semana passada vi uma nuvem branca que parecia um elefante e que se movia da direita para a esquerda, muito devagarinho, devagarinho, como se estivesse a andar. Dei por mim a pensar "isto é tipo uma câmara lenta, mas ao vivo" como se o céu fosse já um ecrã. Há mil e uma críticas possíveis à tecnologia e à maneira como sentimos que esta domina as nossas vidas, mas se há algo que estes meses tornaram mais claro do que nunca é que não existe ecrã nenhum que nos faça sentir o vento no cabelo, o cheiro do mar de noite, os braços dos nossos amigos à nossa volta. Que nunca nos esqueçamos da importância de olhar para o céu, de ver o nascer do sol sobre o Tejo, de dançar até doerem os pés, de fazer piqueniques no jardim, de beijar com língua, de dar as mãos. 

Que seja esta uma carta aberta para o presente e para o futuro, um agradecimento escrito ao que temos e ao que somos. Tivemos hoje a companhia um gato no ecrã enquanto aprendíamos sobre semiologia, o que não teria sido possível de outra forma. Enquanto acabo de escrever isto, tenho a companhia da minha amiga num pequeno ecrã, e que incrível que é!

Posto isto, sirvo um copo de vinho branco, fecho os olhos e danço como se não estivesse aqui — ainda não é proibido sonhar.