terça-feira, 15 de dezembro de 2020

De como poupar em francês me serve para gastar em pounds e dollars

(ou: se não lesse em francês ia passar ao lado da Adichie)


    O título é só para agitar as águas, mas tem uma explicação:

    Quando entrei naquilo que hoje é conhecido por 2.º ciclo da escolaridade obrigatória, comecei, oficialmente, a aprender uma língua estrangeira: o francês.

    Dizia-se do francês algo que não era dito de outras línguas: que era uma «língua de civilização». A Alliance Française e o Charles Lepierre, aliás, ministravam cursos através duns livros que tinham como título «Cours de Langue et de Civilisation Françaises» (e eram muito bem feitos).

    Como também falamos uma língua romance, o francês entra bem nas nossas cabeças. O inglês—que apareceu na agenda do meu liceu dois anos depois—já obriga a um salto maior.

    Fiz a infância e a adolescência a ler em francês, fiz boa parte da faculdade a estudar em francês, habituei-me a ler revistas em francês. Já larguei quase tudo; uma delas, no entanto, sobrou neste século 21: uma revista literária chamada Lire. Recentemente fundiu-se com uma outra, mais antiga, de nome Magazine Littéraire, passando a ser Lire; magazine littéraire. Um pouco como aquele índio na banda desenhada Oumpah-pah, chamado «Só-tem-um-dente» (N’a qu’une dent), que o perdeu em combate e passou a chamar-se «Só-tem-um-dente-mas-caíu-de-forma-que-agora-não-tem-nenhum» (N’a qu’une dent mais elle est tombée alors maintenant n’en a plus). (Tudo isto vai de memória; agradeço a condescendência de quem leia…)

    Porque é que continuo a ler a… Lire?

    Porque a França tem um mercado literário muito abrangente, que cobre ostensivamente obras que, em países de língua inglesa, são mais marginais.

    Pensemos naquela tendência para a classificação que é típica da cultura norte-americana: há os géneros todos locais, e há um nicho chamado alternativo. O que é alternativo? É o que não é local. O que não é local? É tudo o resto.

    Tudo o resto é todo o Oriente, próximo ou extremo, tanto faz; e a América Latina; e a Europa, com exceção das ilhas britânicas; e a África; e essa imensidão que se situa por cima da China e a leste das novas nações europeias de leste, que dá pelo nome de Rússia. E os Aborígenes, os Maoris e os pinguins. Os Alfacinhas também são alternativos (e o Mário Zambujal alentejano).

    Temos nestes sítios pilhas de escritores que não escapam à tradução francesa, por vezes, tardia, mas sempre universal. É interessante, porque os franceses são muito chauvins, mas muito curiosos, e não deixam pedra por levantar em matéria de literatura estrangeira. Orgulham-se de traduzir… e de integrar. Alternativo não é uma etiqueta numa gaveta: é coisa corrente, está logo ali no tampo da mesa.

    Devo à Lire a leitura dum conjunto de autores que, de outro modo, talvez me tivessem escapado, e que representam uma amostra do melhor que a literatura, abordando questões importantes do nosso tempo, tem a dar. Aqui incluo muitos livros de escritoras, e o aparecimento de grandes escritoras é uma das marcas mais importantes destes dois quartéis de século: o final do 20 e o primeiro do 21.

    Por exemplo, só para falar de literatura feita por mulheres:

    Chimamanda Ngozi Adichie, nigeriana, feminista apostada, com (pelo menos) dois livros traduzidos pela D. Quixote: «Meio Sol amarelo» (Half a Yellow Sun; a relação entre duas irmãs em plena guerra do Biafra é um dos pretextos para discorrer sobre tudo e mais alguma coisa) e «Americanah» (o fim da ilusão americana, de facto; e o retorno);
    Djaïli Amadou Amal, camaronesa, por traduzir (creio): «Les impatientes» (a condição feminina na tradição do casamento forçado);
    Mary Beard, inglesa, historiadora da Roma do período clássico, professora em Cambridge: «SPQR» e «Mulheres e Poder: um manifesto», também presente no You Tube com um molho de documentários para a BBC sobre a Roma antiga que são um petisco;
    Elena Ferrante, napolitana, com uma tetralogia já famosa e adaptada, parcialmente (e bem), à televisão: «A amiga genial», verdadeiro romance de várias vidas (duas, sobretudo: Lenu e Lila, saídas dum bairro popular dos arredores de Nápoles)
    Jhumpa Lahiri, londrina, filha de imigrantes indianos, naturalizada norte-americana, reside em Roma e escreve atualmente em italiano; escreve contos como poucos: «Intérprete de enfermidades» passa pelo dia-a-dia de gente variada de cultura indiana (os pais da escritora são bengalis) com uma leveza e uma síntese de observação que lhe valeram um Pulitzer;
    Madeline Miller, norte-americana: «O canto de Aquiles» e «Circe» (a biografia não autorizada da feiticeira Circe da Odisseia de Homero—mulher imortal e muito solitária, com expedientes e encanto, mas tempo em demasia);
    Leïla Slimani, franco-marroquina de Rabat, ganhou um Goncourt com «Canção doce» (a ama perfeita que toma conta das crianças dum casal burguês—tão perfeita quanto posta à margem por aquela família de quem, verdadeiramente, não faz parte).

    De resto, a Lire não é forreta nos géneros: infantil, BD, divulgação científica, ensaio, história, policial—tudo cabe na revista. Foi lá que tropecei no Andrea Camilleri, siciliano que inventou o comissário Montalbano, personagem interessantíssima de inúmeras novelas e que deu pano para mangas, incluindo uma série da RAI com qualidade, que passa, volta não volta, na RTP2. E, também, a Fred Vargas (Frédérique Audoin-Rouzeau, na vida real), parisiense, arqueóloga urbana e ativista política, criadora doutro comissário não menos interessante, Adamsberg. E, já agora, Donna Leon, americana radicada em Veneza durante uma vida, especialista em música barroca (Haendel, em particular), que se recusa… a ser traduzida em italiano, e que criou o comissário Brunetti, veneziano, chefe de família, pai dum casal, confrontado com o crescimento dos filhos e os problemas sociais da Itália do norte.

    Foi também na revista que tropecei em dois nomes grandes do romance norte-americano. O primeiro é John Williams: «Stoner» (1965) é, seguramente, um dos grandes romances do século, e acompanha a vida dum professor de literatura. De seguida, James Salter: «Tudo o que conta» (All that is) é o seu último romance (2013), e acompanha a vida dum editor. Estas duas personagens fecham muito convenientemente o meu paleio…

    Porque diabo estou a escrever isto tudo? Porque sou dado a livros e gosto de divulgar tudo aquilo de que gosto.

    Leiam, depois me contam…

António Mouzinho