quinta-feira, 22 de outubro de 2020

 Restos de Carnaval 


“ E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu. ” 

“ E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque vinha ao encontro da minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim. ”

- Clarice Lispector ; ‘Restos de Carnaval’

Durante o carnaval, aqui no Brasil, tanto antigamente como hoje em dia, sempre foi comum o uso de máscaras e fantasias. Sendo brasileira, cresci rodeada de carnaval. A partir do ano novo, começam as pré-celebrações, festinhas pequenas, que vão aumentando de tamanho conforme o tão desejado mês de fevereiro se aproxima. Apesar de o feriado durar só uma semana, para a maioria, o carnaval dura fevereiro inteiro, há festas de rua, privadas, e desfiles de escolas de samba… no carnaval tudo é possibilidade, medo e vergonha se perdem, paquera-se um, e se for rejeitado, que seja, nada de lamentos, logo segue-se para o próximo, no carnaval pode fazer xixi na rua e andar semi-nu. Tudo bem, é Carnaval. Logo que o mês acaba, começam as festas de ressaca de carnaval (que duram mais ou menos até o fim de março), e depois dessas, espera-se o ano inteiro por fevereiro de novo, as escolas de samba ensaiam, lojas preparam a próxima coleção de carnaval, e as pessoas pensam na sua proxima fantasia e passaram o inverno malhando para ter o “corpo de carnaval” no verão. 

Este ano teve carnaval no Brasil, assim como teve carnaval ano passado, e terá carnaval ano que vem. Simplesmente por que o carnaval é um evento natural, assim como a chuva sazonal, ou, melhor ainda, época de acasalamento dos animais. Quando usa-se máscaras, veste-se das cores mais chamativas, mostra-se seus atributos físicos, e até mesmo cria-se danças! Assim como flores que desabrocham na primavera, nos enchemos de cores no verão. Prepara-se o ano inteiro para isso, e quando acaba, começa-se a se preparar de novo. O carnaval, resume-se não somente a uma expressão cultural e social, onde pessoas de todos os tipos se juntam para festejar, não se trata somente de uma festa que movimenta dinheiro. Mas seria a pura expressão coletiva do que temos de animalesco dentro de nós, aquilo que nos move, desejo, desejo de atenção, diversão, e desejo sexual. Nada se assemelha mais  a um pássaro cortejando seu parceiro que um dois mascarados numa das festas de rua em algum dos carnavais do Brasil.  Dentro do grande delírio coletivo que é o esta festa, a autora Clarice Lispector escreve sobre suas lembranças de carnaval, como ela se arrumou e se maquiou para festa, como tinha medo e se sentia tentada pelo mistério das máscaras que vestimos nesse tempo de festa, e termina, satisfatoriamente seu conto assim: ‘Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.’ A festa deu-a a oportunidade de se tornar uma rosa, e é essa oportunidade que nós buscamos em todo carnaval.