De acordo com o Houaiss:
fundamental adj.2g. (sXV cf. FichIVPM) 1 que serve de fundamento, de alicerce 1.1 que dá início, real ou simbolicamente, a um projecto, construção, obra etc. >pedra f.< 2 fig. que tem carácter essencial e determinante; básico, indispensável o ETIM lat.tar. fundamentālis […]
Há textos fundamentais!
Uma iniciativa tripartida Letras/Belas-Artes/Ciências deu origem a um curso curioso: chama-se Estudos Gerais, tem um aroma meio medieval, meio renascentista, já com acentos de especiarias guardadas em bolsos de jesuítas e, se considerarmos uma reforma da Universidade no Ocidente, joga em dois tabuleiros: também já pertence à Contra-Reforma…
Quando olhamos para o currículo ficamos com a sensação de que não serve para nada! Não dá médicos, nem sapateiros; não dá pintores, nem economistas; não dá carpinteiros nem advogados.
A Agustina Bessa-Luís, prolífera produtora de aforismos (e desaforismos, segundo alguém), dizia da gente — que não há ninguém completamente inútil: pode sempre servir de mau-exemplo.
A aparente inutilidade da licenciatura faz dela algo, seguramente, útil: é um manancial de generalistas. Generalistas são pessoas que dão uma ajuda quando os especialistas se perdem. (Não posso gabar demais uma leitura muito estimulante que fiz há uns anos: L’utilità dell’inutile. Manifesto. Con un saggio di Abraham Flexner — ORDINE, Nuccio, 2013. Há tradução em português do Brasil, de 2016, na Zahar Ed.: A utilidade do inútil, etc.).
Uma das disciplinas que faz parte do «tronco comum» de Estudos Gerais chama-se «Textos Fundamentais»; tem 3 módulos, espalhados por 3 semestres, e é importante: obrigatória no tronco comum, senta-se, imponente, nos horários, e premeia os distintos frequentadores com 18 créditos!
Quando encetei os meus estudos gerais — com sede material na Faculdade de Letras —, entrei na primeira aula convencido de que ia ter um banho de literaturas, da Antiguidade Clássica até ao século 20. Bom: o primeiro texto chamava-se «Discurso preliminar» e era o prefácio do Traité Élémentaire de Chimie, présenté dans un ordre nouveau et d’après les découvertes modernes; Avec figures (com bonecos: tomem lá!!). O autor, conhecido do ensino secundário: Monsieur Lavoisier, de l’Académie des Sciences, de la Société Royale de Médecine, des Sociétés d’Agriculture de Paris & d’Orléans, de la Société Royale de Londres, de l’Institut de Bologne, de la Société Helvétique de Basle, de celles de Philadelphie, Harlem, Manchester, Padoue, Etc.
O «Etc.» deixa-nos pasmados!
Então, nos Textos Fundamentais, e para estrear os dentes, um prato de substância: um tratado de química, pela mão da professora Ana Simões, docente de História da Ciência da Faculdade de Ciências de Lisboa — ali ao lado.
Estava dado o tom do curso!
A noção de «texto fundamental» é algo de precioso: pode passar por um conto terrível do Borges, o prefácio dum tratado de química, os transes da Ilíada que nos descrevem como Aquiles despedaçou diariamente o cadáver de Heitor até, finalmente!, ser tomado de compaixão, ou o raciocínio económico de Keynes.
O Saussure também é elegível, evidentemente. Ao fim e ao cabo, a licenciatura de Estudos Gerais (só «estudos», para os amigos) instituiu em disciplina aquilo que todas as licenciaturas que se prezam oferecem informalmente: textos fundadores sobre matérias importantes. Dentro da multidão de obras de importância reconhecida como gigantesca, a escolha é arbitrária, bem entendido. E há quem morra sem ler um soneto de Camões, sem sofrer particularmente com isso, e sem ser um miserável. Não leu o soneto, pronto, paciência…
As fontes de comoção, de entusiasmo, de sedução, podem vir de muitos lados: existem obras de todos os géneros da comunicação entre seres humanos que são particularmente provocatórias, e cada um de nós só chega para algumas encomendas.
Há muitos anos, li que o pianista Arthur Rubinstein foi a um concerto de outro pianista, um russo chamado Sviatoslav Richter, que a União Soviética guardava ciosamente e que fazia, dessa vez, uma estreia no Ocidente. Bom: sabendo da aura que precedia Richter, sentou-se na plateia, a ouvi-lo e a achar que, de facto, o homem tocava muito bem. Estava nisto, serenamente, a achar que o homem tocava muito bem, quando, de repente, deu por si de cara ensopada, com lágrimas inexplicáveis a correr sem controlo. Os sons tocados de certa maneira tinham, aparentemente, acionado algo no cérebro de Rubinstein, abrindo-lhe involuntariamente a torneira das glândulas lacrimais. Não sei como dizer isto de outra forma, porque eu próprio, um dia, a ouvir um concerto de piano de Rachmaninov, pelo mesmíssimo Richter — tive exatamente essa reação. O disco fazia parte de uma caixa com gravações do russo, de onde tomei, dessa vez, um disco que ainda não escutara — não sendo, sequer, particular fã de Rachmaninov. E zás!
Isto que funciona com a leitura, e com os sons, é válido para o olhar. (A publicidade sabe bem disso, e usa e abusa, quer seja institucional, quer seja comercial, das imagens que nos provocam reações conhecidas.) Em arte, as mais variadas obras (fundamentais, diríamos) executam grandes e teatrais gestos na nossa sensibilidade.
É impossível duvidar do olhar e da mão do David de Michelangelo: vai matar com a pedrada! É impossível escapar ao fascínio lisboeta da Integração racial do Almada Negreiros: a janela é de cá (no mínimo), e aquela luz que sentimos na pele é totalmente diversa da das janelas de Gris, ou de Matisse.
Cada vez que olho para uma imagem interessante estou a olhar para uma peça do puzzle mental que me acompanha quando falo, quando escrevo, quando ouço, quando sinto.
A leitura e a escrita estão dependentes da nossa faculdade de tomar algo de empréstimo ao cérebro: um pouco da sua capacidade de reconhecer formas simples, com relações de quantidade e angularidade simples. Resultam numa infinitude de possibilidades de comunicar, que vão, da injúria disparada, ao dito soneto, do dito Camões.
Os signos são infindáveis; as suas combinações, infindáveis são. Na nossa capacidade de «leitura» cabem todos os conteúdos que entendermos lá pôr.
Um professor de latim da Faculdade de Letras, André Simões, exibe, nas suas comunicações, um aforismo do Padre Manuel Bernardes, que reza assim: «Dizem que os Cursistas de Artes no primeyro anno são Doutores, no segundo Licenciados, no terceyro Bachareys, e despoys são nada, porque quãto mais vão estudando, tanto melhor sabem que não sabem: e quanto era menos a luz, era mais a presumpção.»
Saído dum oratoriano — educado por jesuítas, no século 17 —, dificilmente se arranja melhor!
António Mouzinho
