terça-feira, 27 de outubro de 2020

 

Distância

 

Construímos cada vez mais uma realidade à parte, desconectada do mundo, autossuficiente, e portanto centrada no “eu”:

«Não há uma «catástrofe ambiental». Há, sim, esta catástrofe que é o ambiente. O ambiente é o que resta ao homem quando ele já perdeu tudo o resto. (…) Não há nada para além de nós, filhos da despossessão final, exilados da última hora – que vimos ao mundo em cubos de betão, colhemos fruta em supermercados e seguimos os ecos do mundo na tv – para ter um ambiente. Não há nada para além de nós a assistir ao nosso próprio desvanecimento, (…).

Aquilo que se fixou enquanto ambiente foi uma relação com o mundo fundada na gestão, ou seja, na estranheza. Uma tal relação com o mundo em que nós não somos feitos do murmúrio das árvores, do cheiro a fritos do prédio,  do correr da água, do bruaá das salas de aula, ou da humidade das noites de verão, uma tal relação com o mundo em que existo eu e o meu ambiente, que me rodeia sem nunca me constituir. Tornámo-nos vizinhos numa reunião de condomínio planetário. Não é fácil imaginar um inferno mais completo.

Nunca nenhum meio material mereceu a designação de «ambiente», a não ser, eventualmente, neste momento, a metrópole. (…) Nunca um cenário dispensou tão bem as almas que o atravessam.» (COMITÉ INVISÍVEL, 2010, pp. 70 e 71).”

E é mesmo de ‘atravessar’ que se trata: sempre que saímos do “casulo doméstico”, apressada e atarefadamente, é com uma máscara, que nos impede  de sentir o sol, o ar, os cheiros; não podemos tocar todas as texturas e profundidades para não nos infetarmos com germes; e muitas vezes ainda andamos com fones (“«com o meu leitor de mp3, eu sou senhor do meu mundo.» Para sobreviver à uniformidade que nos cerca, a única opção é reconstituir sem parar o nosso próprio mundo interior, como uma criança que reconstruiria por todo o lado a mesma cabana.” (COMITÉ INVISÍVEL, 2010, p. 54).

Em suma, o contacto com o mundo, com a realidade, é evitado ao máximo (agora mais do que nunca - em nome da segurança), pelo que é também mais oportuno do que nunca questionar essa forma de relação, e a hierarquia de valores subjacente. Porque com a pandemia estamos a viver um paradoxo incrível: A vida suspende-se para sobreviver’, “a sociedade da sobrevivência perde completamente o sentido do bem viver”, eparadoxalmente, o amor ao próximo manifesta-se como distanciamento. (BYUNG-CHUL HAN, 2020)

A pandemia veio intensificar a relação mediada e distanciada que temos com a realidade, que vivemos cada vez mais através do écran do telemóvel ou da televisão. Esses médiuns sumarizam, simplificam, bidimensionam, reduzem a informação, que na verdade necessita de grande complexidade para ser compreendida; por outro lado, o excesso de informação e de disponibilidade que esses médiuns nos proporcionam força-nos à passividade e indiferença (“La mélancolie est cette désafection brutale qui est celle des systèmes saturés. (JEAN BAUDRILLARD, p. )), e a nossa atenção torna-se fragmentada e dispersa – Baudrillard fala de uma “force de realité” que falta: “tout cela vient s’aneantir sur l’écran de la télévision”. (JEAN BAUDRILLARD, p. 236)

Todos os nossos sentidos (que os filósofos antigos apelidavam de “as janelas da alma”) passam a ser exercidos apenas em contextos e ambientes por nós criados (deixámos de abrir a nossa alma ao mundo que descontrolamos).  Os músculos, por exemplo, exercitamos no ginásio, fora de qualquer interação direta com o mundo, com o qual passamos a ter uma relação neutralizada…

«O que torna a crise desejável é que, nela, o ambiente deixa de ser o ambiente. Somos compelidos a restabelecer um contacto, ainda que fatal, com o que temos, a reencontrar os ritmos da realidade. Aquilo que nos rodeia já não é paisagem, panorama, teatro, mas sim aquilo que nos é dado habitar, com o qual devemos criar e no qual podemos aprender.» (COMITÉ INVISÍVEL)

Mas na verdade a nossa resposta à pandemia consiste em levar a um extremo da mediação TODAS as ligações:

Quando a natureza nos ameaça tocar de forma letal, a mediação com a natureza passa a ser nos imposta com um caráter de obrigatoriedade/…assumida/autoritária/. A espontaneidade e liberdade são controladas, num vigiar constante, indiferente ao facto de que esconder-se da morte significa esconder-se da vida.

Com a imposição do distanciamento, a comunicação passa a ser feita exclusivamente através das redes sociais - é uma comunicação muito mais narcísica, porque só o eu é que está verdadeiramente presente, o outro está a uma grande distância…

Também as aulas que passam a ser por zoom tornam a aprendizagem, que seria um momento de partilha, num exercício muito mais individual quando o ambiente não é partilhado, e as sensações que eu sinto são tão diferentes das que os outros sentem (deixamos de ter uma experiência sensorial e emocional comum, que depende tanto do ambiente físico, do ‘aqui’).

 

Mas existe ainda uma profunda identificação entre a humanidade e o mundo, por mais controlado que seja o ambiente que nos circunde, e que pode ser sentida (como conclui Lévi Strauss nas famosas últimas linhas de “Tristes Trópicos) eman essence that may be vouchsafed to us in a mineral more beautiful than any work of Man; in the scent, more subtly evolved than our books, that lingers in the heart of a lily; or in the wink of an eye, heavy with patience, serenity, and mutual forgiveness, that sometimes, through an involuntary understanding, one can exchange with a cat’. (CLAUDE LEVI-STRAUSS)

 

COMITÉ INVISÍVEL (2010) - A Insurreição que vem, Lisboa: Edições Antipáticas

BYUNG-CHUL HAN (2020) - A Sociedade Paliativa, Lisboa: Relógio DÁgua

JEAN BAUDRILLARD (1981) - Simulacres et simulation, Paris: Éditions Galilée

CLAUDE LEVI-STRAUSS - Tristes Tropiques, New York: CRITERION BOOKS, INC. disponível on-line:

https://archive.org/stream/tristestropiques000177mbp/tristestropiques000177mbp_djvu.txt