terça-feira, 27 de outubro de 2020

O nada que é tudo

Na obra o Corpo e a Imagem, Bragança de Miranda baseia-se no mito que Fernando Pessoa descreve em «Ulisses» na Mensagem, defendendo assim que a imagem é um «nada que é tudo». A intenção desta afirmação consiste em distinguir a imagem como algo mental, ou seja, a imagem não é algo material «é nada», «mas é tudo» porque é dela que decorre a existência. Se pudermos afirmar que no principio não era o verbo, mas sim as imagens ainda sem homens, chega-se rapidamente à conclusão de que se fossemos aplicar uma data de nascimento à imagem essa seria a mesma data de nascimento que aplicaríamos à natureza, após isso vem o verbo e o registo do ser humano.

Fernando Pessoa

Primeiro: ULISSES

        Primeiro

        ULISSES

O mito é o nada que é tudo.

O mesmo sol que abre os céus

É um mito brilhante e mudo —

O corpo morto de Deus,

Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,

Foi por não ser existindo.

Sem existir nos bastou.

Por não ter vindo foi vindo

E nos criou.

Assim a lenda se escorre

A entrar na realidade,

E a fecundá-la decorre.

Em baixo, a vida, metade

De nada, morre.[1]

 

“A perda da imagem absoluta equivale ao desabamento da hierarquia em que o absoluto se sustenta, mas também à indecisão sobre as imagens a vir ou que vêm na infinidade dos envios que nos chegam de todo o lado, apoiados nas tecnologias telemáticas. A nossa crise, hoje, é acima de tudo a das imagens, e com ela, a das palavras, valores e todas as outras.”[2]

 

Com esta afirmação podemos perceber, mais à frente na obra, a defesa da teoria de que o problema e a crise moderna baseiam-se na falta de uma imagem comum. Uma imagem que sirva de ícone comum, que atinja e que toque todo o ser humano e tudo o que dependa deste. No entanto a imagem tem-se vindo a desfragmentar ao longo do tempo, porque não poderia haver liberdade enquanto se resumisse tudo a um ícone comum. Era preciso libertar as imagens, fossem para que uso fosse.

 

“A «imagem» existe para se poder conviver com a violência de tais forças; ela é a forma em que a vida se singulariza, se torna vivível e «humana».”; “A imagem é, assim, uma lesão primordial da opacidade das «coisas».”[3]

 

É aqui que se começa a abordar a imagem na sua essência, o que é a imagem? Se atribuirmos à imagem o pensamento que Da Vinci atribuiu sobre a arte, afirmamos que a imagem é uma coisa mental. Porque a imagem é gerada na mente de um observador de uma obra material ou de um objeto já existente. Outra forma mental, é a chamada arte como conceito, que existe apenas no plano mental. A qual não busca se prender em matéria alguma, ou seja, tratando a imagem desta forma, estar-se-ia a abordar a imagem como coisa mental e produto não só da matéria como também da imaginação.

 O facto de se passar essa imagem para uma matéria, seja num processo de camuflagem, de mimica ou de um conceito artístico, faz com que essa mesma imagem seja um fragmento de um fragmento. Ou seja, existe a imagem da matéria, existe a imagem mental de um ser sobre essa matéria e posteriormente existe a imagem de uma matéria produzida por esse ser. Concluindo todo este processo, vão existindo fragmentos de imagens e fragmentos desses fragmentos. No meio disso tudo, no processo da imaginação graças a esses fragmentos, é possível criar a imagem daquilo que nunca existiu.



[1] Pessoa, Fernando. Mensagem. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972).

[2] Miranda, José Bragança de. Lisboa: Editora Nova Vega, limitada, 3ª edição (2017), p.13

[3] Miranda, José Bragança de. Lisboa: Editora Nova Vega, limitada, 3ª edição (2017), p.24