terça-feira, 22 de dezembro de 2020

A simplicidade da cura e a incerteza da doença

Na última semana tivemos duas notícias completamente opostas relativamente à pandemia que colocou em suspenso muito do que queríamos fazer: a vacinação já começou em alguns países (e já tem data para começar em Portugal); e foi descoberta uma nova estirpe do vírus, sobre a qual sabemos muito pouco. Para mim foi interessante pensar na forma como estas duas notícias representam duas ideias opostas no esquema maior da pandemia: a cura contra a doença. E quais as suas representações e implicações na nossa comunicação.

Rudolf Arnheim, na obra Visual Thinking (1969), afirma que a relação da imagem com o real assenta nos seguintes valores desta, que são três: um valor de representação, um valor de símbolo e um valor de signo. Poucas imagens conseguem ser representar apenas um destes valores. Tomemos como exemplo um sinal de trânsito, como o sinal de STOP: tem um forte valor de signo (pela arbitrariedade da relação entre os elementos plásticos do sinal e o seu significado); tem também um forte valor simbólico (na obra A Imagem (2005), Jacques Aumont afirma que o valor simbólico de uma imagem é, acima de tudo, a aceitabilidade social dos símbolos representados);e tem um forte valor de representação (porque são a codificação de uma norma socialmente aceite e inscrita na lei de um país e/ou cidade).

Toda a simbologia e imagem à volta da vacina é muito simples. Não se pode dizer que é uma questão de tempo ou de habituação à existência das vacinas porque os vírus existem no nosso quotidiano há mais tempo. É mais a exploração da certeza versus a incerteza: uma vacina, a imagem de uma seringa com um conteúdo milagroso, que nos irá proteger dos males e da incerteza que os vírus nos trazem.

No caso do coronavírus não podemos dizer que exista uma imagem que, contendo os três valores já referidos, consiga ser o significante imagético para o significado do coronavírus. Conseguimos, sim, atribuir este papel a uma galeria de imagens, que representam as diferentes caraterísticas e consequências associadas ao COVID-19: as máscaras, o afastamento/distanciamento social, as ruas e cidades vazias, e a própria "caraterização" do vírus, que até já teve direito a diferentes desenhos e caricaturas que representassem sempre a sua malvadez (às vezes com sobrancelhas franzidas e normalmente de vermelho).

É curioso analisar que, mesmo em comunicação, a complexidade e a multiplicação de hábitos, normas e imagens a que associamos a pandemia contrasta em muito com a simplicidade da vacina. As próprias regras de confinamento parcial ou só aos fins-de-semana, que mudam também consoante o risco de cada conselho, não conseguem convergir numa única solução que as represente. Até os órgãos de comunicação social (nomeadamente as televisões) conseguem produzir muito mais notícias sobre o vírus e os seus efeitos do que sobre a sua cura. Porque a cura não é essa convergência: é a substituição, a troca de uma imagem por outra.

Se trocamos as imagens, trocamos os significados. Talvez com o começo da vacinação a hiper-produção de notícias sobre a incerteza seja substituída pela simplicidade da cura.