domingo, 20 de dezembro de 2020

Maria-rapaz

Chamaram-me muitas vezes Maria-rapaz quando era criança, nunca membros da família, que me lembre, apenas colegas e adultos de fora.

Pensava pouco no porquê e não levava a mal, porque não o dizem com mal… penso eu. Por vezes pensava se era da roupa, por causa dos calções ou algo assim, mas a maioria das vezes associava a ter mais amigos rapazes do que raparigas. De um modo geral sempre me dei melhor com rapazes. Não me faz sentir insegura, os tipos de conversas são outros, basicamente, é mais confortável.

Muitas vezes sentia que estava a perder algo por não ter uma grande amizade feminina como aquelas que aparecem várias vezes representadas nos filmes e séries, mas quando tentava só sentia desconforto. Nos últimos tempos conheci mais raparigas e neste momento considero que estou o mais perto do que alguma vez estive dessas amizades que cobiçava e, não sei se, estranhamente ou não, estas apenas se começaram a formar quando me comecei a tornar mais feminina, a gostar de vestidos, de roupas etc.

Muita gente confunde o ser feminina com o ser mulher. Tal como o ser masculino com o ser homem. Para mim são coisas independentes.

Ser feminina consiste nas características mais associadas ao género feminino pela sociedade, mas se pensarmos bem é como uma personalidade: tem várias características e comportamentos. Qualquer um a pode ter, ou partes dela. Ser masculino a mesma coisa. São como lápis de cor! Cada um faz o seu estojo com os lápis de que mais gosta.

Agora que penso, nunca mais ouvi alguém a chamar a alguém Maria-rapaz e quando ouvia, nunca era para descrever adultos ou adolescentes, sempre para crianças.

Talvez tenha deixado de ouvir porque não convivo com crianças regularmente, ou se calhar caiu mesmo em desuso. Seja o que for, faz-me feliz, era uma afirmação desnecessária que não trazia absolutamente nada a ninguém. Simplesmente chama à atenção para características da rapariga em questão que não têm nada de mal, mas se assim é, porquê referi-las?

Há muito a tendência de colocar as pessoas em pacotes. Sou mulher sou feminina, sou homem sou masculino. Mas não. Posso ser feminina ou masculina isso não faz de mim nem homem nem mulher e vice-versa. Por ser uma rapariga que se dá mais com rapazes não sou masculina, mas também não sou feminina.

Eu construo-me. Eu sou eu. Eu escolho os meus lápis de cor. Parece que nascemos logo com obrigações, somos empurrados para cumprir estas regras para cabermos nas conceções dos outros do que devemos ser, quando na verdade, a nossa única obrigação enquanto humanos é simplesmente ser.