terça-feira, 22 de dezembro de 2020

O corpo como reflexo do ego

 A problemática do eu e do corpo está presente na obra de Lacan desde os primeiros momentos de sua trajetória pela Psicanálise. Por meio da elaboração do registo do Imaginário e do esquema conceitual proposto pelo estádio do espelho, ele afirma a importância da imagem do corpo próprio na formação do eu. A referência ao corpo também está presente de forma recorrente ao longo de sua obra, sofrendo reformulações correlativas às retificações que ele introduz. Entretanto, na esteira de Freud, o corpo ao qual ele se refere não é o corpo biológico. O corpo para Lacan é o corpo marcado pelo significante e habitado pela libido, corpo erógeno e singular. Corpo de desejo e, portanto, de gozo, dimensões que certamente contribuem para repensar a problemática do corpo em Psicanálise à luz da nova perspetiva da linguagem.

 

É importante dizer que o Real lacaniano não é o mesmo que realidade. Para Lacan o Real é o impossível, pois ao estarmos a dizer que algo é real é necessário um sentido que, por sua vez, é função do Simbólico e é sempre Imaginário.

O simbólico é o sistema que ordena, é a função do símbolo e também da linguagem, só a partir dele é que se pode ordenar o Real e o Imaginário. O imaginário, muitas vezes assumido como ilusão, trata-se da relação do sujeito consigo próprio e a sua imagem.

Segundo Lacan, o Imaginário será o lugar do Eu. Onde este viverá constantemente enganado por uma imagem que acredita ser o que não é, devido aos efeitos ilusórios e engodativos. O registo do Imaginário corresponde ao ego do sujeito. Tal como Narciso, o sujeito que se ama e, ama o reflexo de si mesmo no outro. Esse reflexo projetado no outro e no mundo, é a fonte de amor, paixão e desejo de reconhecimento, mas também da agressividade e competição. Por possuir um caráter primário, no sentido de antecessor, todas as identificações serão imaginárias em qualquer situação. Essa estrutura sempre se alimentará da perspetiva que o outro tem sobre nós, que conduzirá o desenvolvimento do Eu a partir de identificações ideais e não reais.

Segundo os ensinamentos freudianos, há um estreitamento entre corpo e inconsciente, se Lacan nos diz que "o inconsciente é estruturado como uma linguagem", então é possível dizer que existe uma aproximação entre corpo e linguagem. Podemos interrogar, o que o corpo é capaz de suportar em função da imagem? Esclareçamos que, ao introduzirmos a palavra "suporte", pensamos no sentido de sustentar, como por exemplo, "a linguagem dá suporte à imagem do corpo", como também em suporte associado a aguentar, sofrer, "o sujeito suporta maltratar seu corpo em função de sua imagem".

Vejamos como exemplo as imagens publicadas nas redes sociais, falamos nas imagens de corpos. Procura-se mostrar corpos que passem ideias de perfeição e desejo. Mas será que estas imagens são reais? A imagem, antes de ser capturada, é encenada: escolhe-se o melhor cenário, um angulo que realce as curvas do corpo, uma roupa especificamente usada para aquela foto, etc. Ela é construída com o intuito de passar uma determinada mensagem e conceitos.

Pensar o corpo, do ponto de vista do registo Imaginário de Lacan, implica levar em conta a forma como a imagem do corpo próprio a partir do outro marca a constituição subjetiva e a imagem assumida pelo sujeito. Refere-se à imagem que o sujeito quer passar de si mesmo.

O corpo está enraizado no imaginário, como testemunha a montagem lacaniana. Aparece uno, mas isto não faz identidade. A própria imagem que o fixa inscreverá uma dessemelhança, que impede o sujeito de tomá-lo como corpo próprio.

O corpo do ponto de vista do Real seria sinônimo de gozo, definido não como organismo, mas como "pura energia psíquica, da qual o corpo orgânico seria apenas a caixa de ressonância". Além de, nestas imagens, estar claramente presente um corpo, a ideia não é mostrar uma corpo mas sim um conjunto de símbolos de modo a passar mensagens para o público.

Por fim, o Simbólico aponta para a relação que se estabelece entre fala-linguagem-corpo. Ele diz respeito ao corpo marcado pelo simbólico, no qual as diversas partes podem servir de significantes, isto é, ir além de sua função no corpo vivo. Como já vimos anteriormente, as imagens das redes sociais são encenadas propositadamente para conterem um serie de conceitos e mensagens incorporados e não para mostrarem o seu corpo como um organismo, pelo seu contexto.

 

Concluímos assim que para refletir sobre a veracidade das fotografias mostradas nas redes sociais, ou seja, para explicar o Real torna-se necessário mencionar o Simbólico e o Imaginário. Temos em atenção o corpo e como ele pode assumir outros significados dependendo do contexto que lhe dão.

Neste exemplo, o corpo assume significados e deixa de ser um objeto biológico. Passa a ser a imagem do ego do sujeito.

Com Lacan, evidencia-se a função de captura que a imagem especular exerce e as consequências do facto de que só se tem acesso ao corpo pela sua forma imaginária. Podemos verificar que o corpo é necessariamente definido em relação à falta pela imagem do corpo que inscreverá uma dessemelhança em relação ao próprio sujeito.

Verificamos que partindo da ”fase do espelho”, uma absorção progressiva da imagem na função significante, o que leva à radicalização da relação do significante com o corpo. Se, por um lado, podemos discernir o gozo vinculado ao júbilo da imagem no espelho, por outro, temos uma operação contínua, que inscreve na carne as marcas que serão significadas a posteriori pelo sujeito: "a relação especular vem a tomar seu lugar e a depender do fato de que o sujeito se constitui no lugar do Outro, e de que sua marca se constitui na relação com o significante".