segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

O valor dos valores

 

O mundo em que vivemos está cheio do bombardeamento de mensagens subliminares e uma manipulação psicológica subtil, quase impercetível. Há um sítio na sociedade ocidental que mais temo. Que engole almas, corrói espíritos, altera a perceção do tempo, efetua uma profunda e eficiente lavagem cerebral e mexe com a ansiedade de qualquer ser humano. No caso do caro leitor, por não se relacionar com a descrição anterior, não ter adivinhado já ao que me refiro, então informo-o que possivelmente é portador da doença mais comum do século XXI: o consumismo.

Está certo, o sítio que destrói a minha sanidade mental (e a de muitos outros) são os centros comerciais. Aliados à indústria publicitária, constituem a arma mais forte contra o desapego material natural que podemos observar nos restantes animais. Nós, mamíferos especiais, chegámos ao ponto de resumir a nossa identidade e felicidade aos objetos que nos rodeiam. Ferramentas auxiliares do dia a dia tornam-se, em casos mais graves desta doença, parte do próprio consumidor.

Mas como chegámos a este ponto? Com uma estrutura social que constantemente nos lembra que precisamos de algo e que esse algo tem imenso valor.

“Olha só o novo brinquedo que comprei para mim!” diz o doente adulto enquanto me apresenta com a maior alegria o seu mais recente tablet, possuindo também outros três funcionais. O diagnóstico é simples: alguém que compra frequentemente mais dos objetos que já tem consigo; não dá uso a 100%, o que lhe importa mais e o seu maior valor é tê-lo; tem um cuidado quase obsessivo para o objeto não ficar desgastado do uso, ou cuidado nenhum porque sabe que pode sempre substituí-lo; exibe ou fala das novas aquisições como tema de conversa frequente.

Não o julgo. Aliás, esta lavagem cerebral começa desde tenra idade em que na época natalícia só se ouve jingles repetitivos de anúncios que apresentam imagens de imensidões de presentes enquanto soa “brinquedos, brinquedos eles são o nosso meio de alegria!”. Mentes flexíveis e imaturas crescem com a influência de que só é melhor quem tem mais, do mais caro.

Os centros comerciais são a materialização desta mentalidade consumista, e onde ela chega ao seu apogeu de realização. Montras brilhantes e belas, produtos bem organizados e esteticamente prazerosos, até os odores fazem parte deste processo!

Aquilo que realmente mexe comigo nestes espaços é que, para além de ver a obsessão e a falta de humanidade das pessoas que me rodeiam pela aquisição dos materiais, sinto a entrar na minha mente o desejo de consumir numa contradição interna de racionalmente ter conhecimento do funcionamento doentio deste sistema, mas sentir o prazer inevitável em ver tantas coisas que poder-me-iam servir.

Apanhei do chão 1,20 que um senhor deixou cair à pressa, segui-o uns metros para lhe devolver as moedas, ele olhou tão surpreso e incrédulo com o gesto perguntando-me “Andou isto tudo para me devolver dinheiro?” e eu pensando “Claro, são pedaços de cobre, níquel e latão que não me pertencem.”. No fim recebi um “Deus abençoe”, por entregar um metal que não é meu. É com agradecimento que recebo a bênção, porém logicamente sei que veio da imprevisibilidade de alguém, das cem pessoas que saíram do barco, tomar a decisão incomum de não ficar com pedaços de metal ao qual atribui um valor ridículo. 

É uma reação tão universal que não me surpreende.

Consumidores lutam por uma televisão na "black friday", Luke MacGregor, 2014 
Fonte: https://www.washingtonpost.com/

MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política, vol. 1. Moscovo, Lisboa: Progresso, Avante!