segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Palavras para quê?

     Eu não sabia sobre o que é que seria esta publicação. Em boa verdade, eu nunca sei exatamente sobre o que é que irei escrever antes de começar. Hoje li um pequeno texto de Clarice Lispector, publicado no Jornal do Brasil de 1968, chamado "Como é que se escreve?", que fala precisamente disso. Diz ela: "Quando não estou escrevendo, eu simplesmente não sei como se escreve" e diz Foucault, em As Palavras E As Coisas : "A linguagem tem em si mesma seu princípio interior de proliferação." E digo eu, de uma vez por todas: vou também escrever sobre o que se faz quando se escreve. Não que o saiba, não que tenha o mínimo conhecimento sobre o assunto. Não que queira que me levem a sério, senhores, oh não, tudo menos isso. Vim aqui apenas com a intenção de conversar. Comigo mesma? Não tanto. Com a madrugada? Em parte. Com o que penso? Estamos perto. Ah! Com as palavras, lá está. Há que as ter em conta, enumerar as suas cores e formatos, os sabores que nos deixam na boca quando as pronunciamos na hora errada, ou as brisas que nos correm pela face quando as deixamos esvoaçar num estendal feito pelo tempo que passamos com alguém especial. São tantas, todas amigas, cheias de si! Assim que começarmos a senti-las a amontoarem-se-nos por detrás dos olhos, nas pontas dos dedos nervosos, no fundo da carne que sente o mundo inteiro, está na hora do papel. Sim, convém que haja papel, para que se entorne a tinta em demasia, se suje a secretária branca e se amaldiçoe as horas tardias das emoções mais cruas e repentinas. Sim, é preciso começar. Zás! E faz-se sem sequer darmos por isso. Costumava achar que quando escrevia assistia a uma valsa mais ou menos caótica das palavras dançarinas no salão escorregadio da minha mente. Não é que tenha vindo a discordar radicalmente, mas já não vejo valsa em lugar nenhum, nem salão límpido e convidativo. Ninguém está cá para bailar, não há ritmos a respeitar nem troca de pares e de ideias. Há somente movimento constante, frenético, imperceptível. Atropelamentos, bofetadas, violências de boa educação. Com licença, deixe-me passar, olhe que eu cheguei primeiro. Não chegou coisa nenhuma, que eu estava aqui à espera desde ontem à noite, pensa que eu sou parva ou quê? Deixe-se estar quieta, que a menina não tem qualquer interesse. Sabes lá tu o que é que tem interesse, só ela sabe sobre o que é que vai escrever! Não, minhas queridas, nem ela o sabe, nem ela o quer entender. Como se vê, aliás, como testemunha o leitor agora mesmo. Escrever não é mais do que ouvir o que se pensa e remexer nisso até deixar de ser o que era. Ou antes, até sê-lo mais do que nunca. Escrever não é mais do que calar o que se ouve, ficar de olhos cerrados e fechar as mãos com a força que é precisa para que a caneta rebente e manche a pele com tinta que não sai. Escrever não é mais do que ter coisas para dizer e não as olhar nos olhos, não as chorar nas mãos, não as sentir no peito. Escrever é ficar dormente do corpo inteiro por se sentir o tamanho dos dias e das pessoas e das coisas todas, todas, todas. Escrever faz-se quando não se quer ir dormir, quando não se quer esperar, quando não se quer estar. Aquele que escreve não se conhece melhor a si mesmo, nem aos outros, nem à paisagem que vê da janela do quarto, nem ao seu gato, nem ao seu amante, nem ao seu desconhecido. Mas conhece as palavras. E dá-se bem com elas, quando é preciso. Escrever não é nada que eu saiba fazer e não é nada que a Clarice Lispector saiba fazer, porque não é nada que se faça. É algo que se quer e que se pode ter, de vez em quando. É algo que nos acontece.