terça-feira, 22 de dezembro de 2020

UM DIÁLOGO SOBRE UM MONÓLOGO


NARRADOR:
Em uma mesa de café da manhã bem-posta, duas figuras sentam- se uma em frente a outra. Os olhos se entrelaçam, e imediatamente as palavras se formam no ar.
PAULO:
Sabe o que eu acho mais estranho nos monólogos Isabel? (nome fictício, as identidades são indiferentes para o enredo subsequente)
ISABEL:
O que Paulo? (mais um nome inventado)
PAULO:
Quando se percebe que estás a falar sozinho...
ISABEL:
Mas, como sozinho? Normalmente uma plateia está a assistir ao monólogo.
PAULO:
Não necessariamente. Em tempos de cólera aguçados por amor e outras drogas – exatamente o que sempre vivemos neste planetinha mixuruca. Nos momentos em que somos os únicos a falar, estamos completamente sozinhos.
NARRADOR:
Isabel dá um gole em seu café, inebriada pelas palavras. Entretanto, ao mesmo tempo desacreditada acerca dos aforismos impostos a ela, àquela hora da manhã.
ISABEL:
Como podes ter tanta certeza Paulo? Ao auge dos seus menos de 100 anos em vida, tens absoluto credo do que falas?
NARRADOR:
Paulo se anima, Isabel sempre o indaga de forma empolgante.
PAULO:
Veja bem, meu docinho de coco. Em qualquer conversa feita (de preferência na mesma língua) eu penso no que quero dizer, através da fala – eu traduzo o que foi formado no meu pensamento. Entretanto, ao soltá-las ao vento como um dente de leão, elas percorrem um caminho tortuoso, e estão suscetíveis à todas as mazelas conhecidas e desconhecidas.
ISABEL:
Até parece que as palavras são frágeis e leves como os espólios de uma flor. Elas pesam como chumbo!
PAULO:
Exatamente, estás a pegar o espírito da coisa!
Em algum momento elas terão que pousar sobre ti...
Ou melhor, cair em queda livre.
ISABEL:
Certo...
NARRADOR:
Uma pausa é feita, e a buzina de um carro vinda da rua ao lado, corta os milésimos de silencio que inundaram a mesa. Paulo se levanta extasiado.
PAULO:
ISSO!
NARRADOR:
Em um rompante levemente exagerado, Paulo derruba o açucareiro no chão.
ISABEL:
Meu Deus, que susto!
PAULO:
Segundo Nietzsche, Deus morreu.
ISABEL:
Ele também, em 1900.
PAULO:
Essa são as mazelas pelas quais eu dissera que as palavras estão submetidas. Agora, a minha linha de raciocínio foi corrompida, e chegara cheia de desarranjos aos seus ouvidos.
ISABEL:
Agora a névoa se dissipou..., mas ainda assim, precisas limpar a nuvem açucarada da tábua corrida.
NARRADOR:
Isabel dá um risinho cheio de quartas intenções...
ISABEL:
A TGI de Shannon de repente se tornou mais interessante na tua voz.
PAULO:
Por isso amo-te!
ISABEL:
Mas ainda não percebi o que queres propor para que o monólogo se torne menos solitário.
PAULO:
As inserções que fizestes em meu monólogo explicam o fim da solitude.
ISABEL:
Obviamente nunca iria aceitar qualquer coisa vinda de ti passivamente.
NARRADOR:
Paulo termina de limpar os grãos de açúcar, levanta a cabeça e dá uma piscadela para Isabel.
ISABEL:
Portanto, suponho que a questão da linguagem seja justificada pela diminuição nas interferências. Correto?
PAULO:
Natürlich, meine Liebling
ISABEL:
E, se não for possível?
PAULO:
Precisaríamos de um meio termo. Oráculo, esfinge, Mãe de Santo, Narrador, Entidade, Tradutor, Mediador ou Médium. Chame do que quiser, a premissa é a mesma.
ISABEL:
Será essa mesa o nosso médium?
PAULO:
Talvez nosso amor.
ISABEL:
Ou isso.

NARRADOR:
Doravante seja a minha figura como mediador entre este pedaço de papel falante, e você, caro leitor. Pressuponho que esteja a pensar o que diabos este diálogo mequetrefe tem a ver com a mediunidade do Museu. Na verdade, o diálogo é a esperança do discurso museológico, o fim do monólogo, da solidão imposta. Da passividade do expectador. O Museu como intermediário entre a linguagem artística e os públicos. O carteiro do conhecimento. Assim como os narradores onipresentes, que modéstia parte, nos fazem ler as entrelinhas.