quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Vénus

     Já faz dias que tento encontrar tema para este pequeno desabafo que convosco partilho. Tem sido complicado, confesso. Desde que tudo isto começou, tornou-se complicado para mim exprimir-me, fazer-me ouvir, e isto, sobretudo porque se tem tornado igualmente complicado pensar. Dou por mim jogada em pensamento nenhum, parece impossível, mas juro que é verdade. Tento concentrar-me e não consigo pensar em nada. Algo como estar fechada numa caixa grande, sentada, com uma tela branca à minha frente, e não existem distrações. Não há distrações, não há pensamentos, não nasce nada, e eu existo, apenas existo. Confesso ainda que durante este últimos meses, apesar de ter sido complicado, tenho tentado estudar e perceber uma parte oculta da minha personalidade. Talvez não oculta assim, mas que de certa forma ignoro, ou penso não me relacionar com ela. Como se uma parte do meu corpo viesse ter comigo umas vezes, e noutros dias desaparecia, como  se já nem fizesse mais sentido. A essa grande carraça que carrego, dei nome de Vénus. Vénus é meu alter-ego. Vénus, que sou eu, (mas não sou) é uma mulher promiscua. Vénus é quente. Vénus é aventura e liberdade. Eu não. Eu sou Pura. Vénus não tem horários, nem compromissos, nem deve explicações. Eu tenho. Adoro Vénus. Queria ser como ela. Mas dou por mim a julga-la, por vezes.

    Em meus trabalhos,  tento sempre fugir destes temas. A mulher, o homem, os seus papeis, as suas posturas, o feminismo, o existencialismo. Enfim, todos os "ismo's". Perseguem-me.

    Inquieta-me aquilo que sou e as minhas vontades.  Já não percebo se gosto de determinadas práticas, e coisas, mesmo materiais , ou se sou levada a gostar. E escrevo sobre isto porque estou confusa. "Um par de sapatos de salto alto não impõem ás mulheres, a partir de fora, a ideia de sexo dominante (os homens) mas usa-los é uma prática ideológica de patriarcado no qual as mulheres participam (..) usá-los é um ato que acentua as partes do corpo feminino que o patriarcado nos treinou para considerarmos atraentes para os homens: nádegas, seios. A mulher participa assim na construção de si mesma como um objeto atraente para o olhar masculino, e como tal coloca-se sob o poder masculino" mas afinal, isto quer dizer, que eu na verdade nem gosto de usar saltos altos, e faço-o porque preciso de corresponder? Mesmo que seja de forma inconsciente? Logo eu, que desde pequena adorava calçar o sapatito bonito de salto da minha mãe?  Talvez seja verdade. Temo que sim. E acho que isto se aplica a tudo, tirando alguns casos, claro, a maioria de nós tem este tipo de atitude porque foi levado a isto, a "embelezar" aquilo que é e possui. "Embelezar" ou "harmonizar" o rosto com maquilhagem e procedimentos estéticos, a "embelezar" o corpo com dietas doidas, horas nos ginásios, e sumos detox, ou chás (agora é mais chá), e no pior dos casos, "a faca". É engraçado pensar que tudo isto não passa de uma farsa lixada que todos vivemos. Que puta de hipocrisia (e ironia) precisarmos usar máscaras para nos enquadrarmos, para sermos aceites como suficientes. E isto desde a forma como apresentamos o cabelo, a pele maquilhada, a roupa que "escolhemos", a forma como falamos, como olhamos, como agimos, não passará tudo de uma enorme encenação? E uma encenação para quê?
     Enfim, um debate oral tornava todo este discurso mais simples. Há momentos em que o que temos para dizer é tanto tanto tanto, que os pensamentos voam à nossa volta e torna-se complicado apanhar todos. É difícil dizer tudo, como se tivesses todas as frutas que gostas numa enorme mesa, mas só tens duas mãos, então agarras nas frutas que consegues, bem rapidinho, cortas, misturas, e fazes uma salada. E muito ficará por acrescentar, e por dizer, e por debater. Mas teremos outras oportunidades. Talvez o que falta nesta salada sejam morangos. Humm manga? Às vezes é a fruta mais saborosa. Espero que não.